terça-feira, 10 de dezembro de 2019

ESPECIAL REVISTA ÉPOCA - PARTE 3 - INTOLERÂNCIA RELIGIOSA HOJE

Se antes as religiões de matriz africana eram perseguidas pelas forças do Estado, hoje o inimigo é outro. Mesmo que seja crime a discriminação ou o preconceito contra religiões, a violência continua. Dados de 2018 do Ministério dos Direitos Humanos mostram que o país registra uma denúncia de intolerância religiosa a cada 17 horas. No Rio de Janeiro a situação não é diferente: o estado possui 12% de todas as denúncias do país. Sendo que as principais vítimas são os seguidores de religiões de matriz africana. Do total de registros entre 2011 e 2018, 54% das 244 denúncias são relacionadas a cultos como a umbanda e o candomblé.


     O professor Bruno Teixeira Pereira, de 37 anos, sentiu na pele as histórias de perseguição que ouviu da avó desde criança. Em 2010, ele se tornou o pai de santo Doté Bruno Ti Tobossy. Doté e abriu as portas de um terreiro em Nova Iguaçu, dando sequência às tradições e à fé que aprendeu com a avó. Mas, logo depois que o barracão do terreiro abriu, começaram ataques de todos os tipos na porta do local. Por três vezes, o espaço foi destruído.



     Na primeira vez, em 2010, em um momento no qual o local estava vazio, desconhecidos forçaram a entrada por uma janela e quebraram toda a área de culto. Nem sequer tocaram em eletrodomésticos novos que estavam ali. Os santos foram o alvo exclusivo. Tudo foi refeito e, quatro anos depois, a ameaça foi ainda mais grave. Também durante um momento em que não havia ninguém, alguém ateou fogo na área de culto. O último ataque foi em 2017, quando pessoas invadiram o terreiro e roubaram todos os santos do oratório.




Destruição após incêndio no terreiro de Doté Bruno.
O GLOBO
     Doté Bruno Ti Tobossy disse que o barração ficava próximo a igrejas neopentecostais, e, sempre que ele fazia celebrações, vinham pessoas distribuir panfletos na porta do terreiro. “Normalmente os ataques ocorriam depois de manifestações em nossas portas, dizendo que ali era uma casa de encosto, um local de impuros, pessoas nojentas”, desabafou ele, que diz não gostar de recordar dos xingamentos. “As palavras têm poder”, refletiu.





     O espaço em Nova Iguaçu, na baixada fluminense, era especial pelo papel que sua avó teve em sua construção, mas Doté Bruno decidiu deixá-lo. Ele disse que registrou na delegacia os dois primeiros ataques, mas os inquéritos não foram adiante. Só o chamaram para depor uma vez. Desde o ano passado, o terreiro está em Belford Roxo, onde convive em paz com os vizinhos. “A nova casa é um recomeço”, disse. “Eu não fui o primeiro e não fui o último. Sempre tem alguém sofrendo um ataque. É uma religião de resistência, resistir, sim, por medo de retorno de coisas não boas do passado”, defendeu.



     Para Doté Bruno, a única coisa que ele não pode viver sem é a manifestação de sua fé. “O candomblé para mim é o ar que eu respiro. A primeira coisa que faço em meu dia quando acordo é conversar com os meus voduns e também é a última que faço antes de dormir. É uma religião em que respeitamos nossos mais velhos. Eles são detentores de um saber que ninguém pode medir”, explicou. Voduns são divindades do povo da tradição Jeje com origem no Benim.

     Somente até setembro de 2019, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), que reúne membros de várias religiões e representantes do Tribunal de Justiça e do Ministério Público, contabilizou 176 terreiros fechados após ataques ou ameaças de traficantes. No ano passado, a comissão não recebeu nem 100 denúncias. Mas a própria CCIR faz o alerta: em muitos casos não há registros, como boletins de ocorrência, desses ataques. Isso porque boa parte deles foram ameaças veladas comandadas por um novo inimigo: o tráfico.



     De fato, os dados da Secretaria de Estado de Polícia Civil, obtidos via Lei de Acesso à Informação, são mais discretos. Segundo eles, desde 2011 foram registrados 77 casos de racismo (discriminação ou preconceito de raça, de cor, etnia, religião ou procedência nacional) em instituições religiosas no estado. Hoje, a maior parte deles é de responsabilidade da Delegacia de Combate a Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, a Decradi, inaugurada em dezembro de 2018.



     Segundo os números da Polícia Civil, por exemplo, dos 24 casos de racismo dentro de instituições religiosas que aconteceram no estado neste ano, mais da metade (54%) está concentrada no bairro de Parque Paulista, em Duque de Caxias, Região Metropolitana do Rio de Janeiro.


     É lá que a Polícia Civil investiga a ação de um grupo de traficantes que atua contra terreiros de religiões de matriz africana na região. Um dos episódios investigados aconteceu em julho, quando traficantes armados invadiram um centro e obrigaram a sacerdotisa responsável a destruir todos os símbolos que representavam os orixás, ameaçando voltar ao local para atear fogo no terreiro. Um caso semelhante ocorreu dois anos antes, em 2017, quando criminosos armados invadiram uma sessão em um barracão, no bairro Ambaí, na Baixada Fluminense, e obrigaram a sacerdotisa a destruir as próprias imagens.



"QUANDO UMA AUTORIDADE FALA QUE O BRASIL É UM PAÍS OCIDENTAL CRISTÃO E QUE A MINORIA TEM QUE SE ADEQUAR À MAIORIA, É UM INCENTIVO À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA"
IVANIR DOS SANTOS
Doutor em História pela UFRJ e interlocutor da CCIR

     Para o Babalawô Ivanir dos Santos, Doutor em História pela UFRJ, e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), apesar das iniciativas nos últimos anos falta efetividade na punição às agressões aos terreiros e religiosos. “Os ataques às religiões de matrizes africanas são um ataque ao estado laico, à democracia, às liberdades, às pluralidade e humanidades”, afirma. E o ambiente de conflito é acentuado quando as autoridades não condenam publicamente a situação. “Quando uma autoridade pública fala que o Brasil é um país ocidental cristão e que a minoria tem que se adequar à maioria, é um incentivo à intolerância religiosa. Ou você se adequa e se converte ou sai do país. Isso acaba propiciando poder aos setores de intolerância”, critica Ivanir.









CRÉDITOS

REVISTA ÉPOCA

Reportagem: Juliana Dal Piva, Nicollas Witzel, Cíntia Cruz, Barbara Libório • Fotos: Leo Martins, Márcia Foletto, Alexandre Cassiano, Gabriel Monteiro • Interface: Vinicius Machado • Desenvolvimento: Carlos Sá, Gabriel Godoy

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