Luzia Cardozo rezava em frente a um oratório para tratar de duas crianças quando policiais chegaram. Preso em seu terreiro, Sizenando José da Silva foi levado por agentes e obrigado a encenar na delegacia o momento em que um espírito “baixa” à terra. Outros foram alvo mais de uma vez. Tito Augusto Dinis dos Santos viu seu terreiro ser arrombado ao menos três vezes por policiais que o acusavam de “feitiçaria”. Esses episódios têm algo em comum, ocorreram há um século, mas só terão um desfecho nos próximos dias, quando seus objetos saqueados sairão de uma delegacia de polícia para se tornar peças de um museu.
Ao longo de quase 400 anos, professar uma fé que não fosse a católica foi considerado crime no Brasil. A abolição da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, no ano seguinte, prometiam inaugurar um tempo de novas liberdades, separando de vez a Igreja do Estado. O direito à liberdade religiosa, garantido no texto constitucional de 1891, tirou da ilegalidade a fé de judeus, muçulmanos, espíritas kardecistas e, especialmente, indígenas e ex-escravos africanos, que até então cultuavam clandestinamente religiões proibidas.
Objetos de religiões afro-brasileiras apreendidos no Museu DOPS - LEO MARTINS / AGÊNCIA O GLOBO
Mas não foi o que aconteceu. O Código Penal, de 1890, permitiu que grande parte da população negra seguisse na mira da polícia por outros 50 anos. Se no tempo da escravatura a discriminação tinha como foco a cor da pele, com a nova norma criaram-se subterfúgios para perseguir a fé que veio da África nos navios negreiros. Os artigos penais de número 157 e 158 puniam, respectivamente, “a prática do espiritismo, da magia e dos sortilégios” e o dito “curandeirismo”. Integrantes da umbanda e do candomblé passaram a ser identificados como praticantes de um suposto “baixo espiritismo”, em oposição aos espíritas kardecistas, tidos como “alto espiritismo”. Assim, de 1890 a 1941, mães e pais de santos em todo o país foram parar em delegacias acusados de ser “feiticeiros”, “bruxos” e praticantes de “magia negra”.
Nos últimos seis meses, ÉPOCA cruzou o resultado de duas pesquisas inéditas feitas pelos historiadores Valquíria Velasco, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Arthur Valle, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), com o intuito de mapear os locais onde ocorreram as batidas policiais na então capital federal do Brasil. Ambos os estudos foram construídos a partir de notícias de jornais da época e processos criminais guardados no Arquivo Nacional.
Apesar de expressivos, os números são apenas uma estimativa da violência praticada pela polícia na época. “O que conseguimos resgatar nos arquivos e nos jornais é uma pequena parcela dos casos”, explicou Velasco, ao dizer que o mapeamento ajuda a entender o que aconteceu. “Sem dúvidas, o total é muito maior do que podemos imaginar”, completou.
Objetos de religiões afro-brasileiras apreendidos no Museu DOPS - LEO MARTINS / AGÊNCIA O GLOBO
A repressão estatal às religiões de matriz africana abarrotou as delegacias com objetos sagrados. Velas, imagens de santos, garrafas com chás, espadas, anéis e animais empalhados são alguns exemplos do que foi recolhido como "evidência de crime". Até hoje, quase 130 anos depois do início das apreensões, 524 objetos permanecem sob custódia na reserva técnica da Polícia Civil, uma pequena construção nos fundos do estacionamento do antigo Museu da Polícia, na Rua da Relação, 40, no Rio de Janeiro. O prédio do museu é o mesmo que, a partir dos anos 1920, sediou o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) - Local onde milhares de pessoas foram presas e torturadas durante a era Vargas e ao longo da ditadura militar.
Nos próximos dias, as peças deixarão as instalações da Polícia Civil para ficar sob a guarda do Museu da República, e o Brasil, enfim, poderá estudar e conhecer as vítimas dessa perseguição. As histórias de Luzia Cardozo, Sizenando José da Silva e Tito Augusto Dinis dos Santos, que a REVISTA ÉPOCA revela a partir de agora.
RUA ARAÚJO LEITÃO, 62 •ENGENHO NOVO
1934
LUZIA CARDOZO
Registros dos processos de Luzia Cardozo - O GLOBO
O dia em que a polícia bateu à porta do terreiro de Luzia Cardozo só não se perdeu de vez no tempo porque o Arquivo Nacional mantém, até hoje, o processo criminal respondido por ela quando foi acusada de praticar o “baixo espiritismo”. Nas páginas, amareladas e manuscritas em letra cursiva, ficou registrada a ação violenta dos policiais.
Eram 15 horas do dia 8 de outubro de 1934 quando o investigador José Tuyuty Batalha entrou na sala dos fundos da Rua Araújo Leitão, 62, no Engenho Novo, Zona Norte do Rio. Ao entrar na sala, o policial deu de cara com uma mulher em frente ao que descreveu como um “oratório”. Era Luzia Cardozo. O policial contou que se tratava de uma mulher de 29 anos, “de cor parda” e que “fingia-se concentrada enquanto dava consultas”.
Junto a ela, na mesma sala, estava outra mulher que procurava tratamento para dois de seus filhos pequenos. As crianças estariam com sarampo. Natural do Rio de Janeiro, Cardozo foi presa em flagrante por três policiais e levada à 1ª Delegacia Auxiliar. Com ela foram apreendidas imagens de São Jorge e Santo Antônio, confeccionadas em madeira, e ainda uma cabeça de barro, alocada dentro de um vaso com farofa e pés de galinha. No interrogatório a que foi submetida, Cardozo disse que a cabeça seria do caboclo Lalu.
Cabeça do caboclo Lalu - LEO MARTINS / AGÊNCIA O GLOBO
Os objetos foram encaminhados para a perícia, que os examinou e concluiu "positivamente" que a mãe de santo exercia a prática de “baixo espiritismo”. Ela ficou presa até pagar a fiança. Um ano depois, foi absolvida da acusação. Para isso, a defesa teve que esconder a fé dela. Argumentou que a casa onde ela estava no momento do "flagrante" era de uma madrinha que tinha morrido. Ela estaria no local apenas "conversando com vizinhos". Não se sabe o que aconteceu a Luzia Cardozo depois disso. A casa onde ela mantinha o terreiro de orações deu espaço a um pequeno prédio residencial. Além da prisão arbitrária, foram necessários 85 anos para que a cabeça do caboclo que ela incorporava finalmente deixasse de ser considerada evidência de crime. A peça é um dos objetos que resistiu ao tempo para ganhar espaço em uma prateleira no Museu da República.
"A MAIORIA DAS PESSOAS QUE FORAM PRESAS SÃO NEGRAS, COMO QUE ASSOCIANDO A COR DA PELE À CRIMINALIDADE."
ARTHUR VALLE
Historiador da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
“Nos registros de jornais (da época), não tanto nos processos, vamos ver que a maioria das pessoas que foram presas são negras. Não são todos os casos, mas a maioria, e isso aparece com um certo destaque, como que associando a cor da pele, o fenótipo, à criminalidade”, contou Arthur Valle, que identificou a origem da peça. A identificação ocorreu porque o processo de Luzia Cardozo inclui uma imagem da cabeça do caboclo Lalu.
RUA CARDOSO DE MELO, 62 • OSWALDO CRUZ
1941
SIZENANDO JOSÉ DA SILVA
A caçada a líderes religiosos de matriz africana costumava ser apresentada como episódios em que policiais “varejavam terreiros”. No dia 31 de março de 1941, o jornal "A Noite" estampou na capa da edição as manchetes “ofensiva contra os macumbeiros” e “uma centena de prisões em 48 horas”. Um dos alvos foi Sizenando José da Silva, de 60 anos, preso na Rua Cardoso de Melo, 62, em Oswaldo Cruz, também na Zona Norte do Rio. Na ocasião, ele foi apresentado como alguém que “trabalhava há 16 anos para a magia negra”. Segundos os registros, só naquele dia 78 pessoas foram presas por praticar o “baixo espiritismo”. Levadas à sede da chefia de Polícia do Distrito Federal, algumas foram obrigadas a encenar para a imprensa e para policiais presentes os rituais sagrados que faziam nos terreiros. Silva foi forçado a vestir os trajes tradicionais e empunhar uma espada e um escudo com um desenho de uma cruz.
Escudo empunhado por Sizenando Silva - LEO MARTINS / AGÊNCIA O GLOBO
Com uma expressão assustada, ele pôs a mão sobre a cabeça de uma mulher que, com ele, foi obrigada a demonstrar a chegada de um espírito por meio da tirada de um “ponto”, ritual típico da umbanda. A mulher precisou traçar no chão um desenho no qual a entidade deveria “baixar” e a roda começou, forçosamente, a entoar um canto sacro: "Congo, Rei Congo. Congo de maleme, Rei Congo, mia pai chegou. Ele veio de Aruanda". Eles prestaram depoimentos e, posteriormente, foram levados para a então colônia correcional de Dois Rios. O escudo usado por Silva em 1941 é outro objeto que vai deixar a guarda da Polícia Civil nos próximos dias. Foi a historiadora Ana Carolina Antão que notou a coincidência entre o objeto e a batida policial na casa de Sizenando ao fazer uma pesquisa para a Secretaria de Direitos Humanos do Estado. Antão analisou, ainda, como a própria Polícia do Distrito Federal, à época chefiada por Filinto Muller, simpático ao nazismo, usava expressões supremacistas para se referir às prisões dos pais de santo. Na prisão, o jornal "Diário de Notícias" anunciou uma “blitzkrieg contra a macumba”.
"A UTILIZAÇÃO DO TERMO 'BLITZKRIEG', ELOGIOSO PARA A POLÍCIA, EVIDENCIA O CLIMA DE PERSEGUIÇÃO"
ANA CAROLINA ANTÃO
Historiadora, Secretaria de Direitos Humanos do Estado
“O blitzkrieg foi uma tática militar de assalto utilizada pela Alemanha Nazista na Segunda Guerra Mundial. A utilização desse termo, elogioso para a polícia, para se referir à ação dos agentes contra os religiosos, evidencia o clima de perseguição”, explicou Antão. “Os objetos apreendidos são fruto dessas ações violentas”, completou.
RUA SENADOR POMPEU, 165 •CENTRO
1889 | 1894 | 1897
TITO AUGUSTO
Ruas do Centro onde existiram os primeiros terreiros de Umbanda - ALEXANDRE CASSIANO / AGÊNCIA O GLOBO
Esse ambiente de combate sistemático aos terreiros fez com que pais e mães de santo fossem alvo de policiais mais de uma vez. Tito Augusto Dinis dos Santos é um desses casos. Ainda que não tenha sido encontrado nenhum processo contra ele, a imprensa da época noticiou que Santos foi preso ao menos três vezes por policiais sob suspeita de “feitiçaria”, em 1889, 1894 e 1897. Ao arrastá-lo para a delegacia, a polícia também carregava suas peças de culto, como uma galinha preta empalhada e frascos de um pó branco.
O terreiro de Tito ficava na Rua Senador Pompeu, 165, no centro do Rio, endereço próximo a locais históricos para a população negra no Brasil. Fica a poucas quadras do Cais do Valongo, onde milhares de escravos entraram no Brasil durante a colônia. A pouco metros da Pedra do Sal, conhecida por ser um espaço do samba e do candomblé, e de diversos outros endereços que constituem a chamada "Pequena África".
Assim, durante muito tempo, os negros construíram sua vida ao redor dos locais onde foram escravizados. Mesmo um século depois, as fachadas de prédios e cortiços do fim do século XIX e do início do século XX ainda conservam as marcas da época. Nas ruas, ÉPOCA também identificou como a influência daquele tempo resistiu. “Terreiro aqui não lembro, não, mas na esquina funcionou muito tempo uma loja de macumba”, contou Milton Vieira, que trabalha há mais de 20 anos em um mercado a poucos metros de onde um dia ficou o terreiro de Santos.
Ruas do Centro onde existiram os primeiros terreiros de Umbanda - ALEXANDRE CASSIANO / AGÊNCIA O GLOBO
Com o aumento da repressão policial na região central, em meio ao processo de modernização urbanística, os religiosos migraram da região central e passaram a refugiar os terreiros na Zona Norte ou na Baixada Fluminense, regiões ainda em processo de expansão.
São esses os relatos que a Ialorixá Mãe Meninazinha de Oxum, de 82 anos, sempre escutou. Sentada no barracão do Ilê Axé Omolu e Oxum, que abriu há 46 anos no bairro de São Mateus, em São João de Meriti, Baixada Fluminense, ela ainda se emociona quando fala em seu santo, Omolu. O orixá, conhecido como Rei da Terra, foi herança de sua avó materna. Foi dela que Mãe Meninazinha ouviu, desde pequena, a história das invasões dos terreiros de candomblé.
"A POLÍCIA ENTRAVA NOS TERREIROS, QUEBRAVA, DESTRUÍA, SEQUESTRAVA OS ASSENTAMENTOS"
MÃE MENINAZINHA DE OXUM
82 anos, ialorixá no barracão do Ilê Axé Omolu e Oxum
“A polícia entrava nos terreiros, quebrava, destruía, sequestrava os assentamentos. Até hoje você encontra no Museu da Polícia (objetos) de Seu João Alagbá e de outras casas que existiam, casas de candomblé, de umbanda”, contou ela. João Alagbá de Omolu foi um Babalorixá, cujo terreiro ficava na Gamboa, centro do Rio. A casa foi fundada no fim do século XIX. A família de Mãe Meninazinha frequentava o terreiro nos anos 1920, assim que veio de Salvador para o Rio de Janeiro. Mãe Meninazinha não chegou a frequentar o terreiro de Alagbá, mas cresceu ouvindo as reclamações da avó sobre “suas coisas nas mãos da polícia”.
Mãe Meninazinha - MÁRCIA FOLETTO / AGÊNCIA O GLOBO
Autor do recém-lançado “História dos candomblés do Rio de Janeiro” e outros cinco livros sobre o tema, o historiador José Beniste relata que a memória da violência foi transmitida geração a geração e muitos candomblecistas passaram a ter medo. Ele também é um ogã no candomblé — auxilia nos rituais cantando e tocando os instrumentos, mas sem manifestar os Orixás.
"PRENDIAM, LEVAVAM O PRETO VELHO INCORPORADO E A PESSOA FICAVA INCORPORADA DENTRO DO XADREZ"
JOSÉ BENISTE
Historiador e autor do livro “História dos candomblés do Rio de Janeiro
“Prendiam, levavam o Preto Velho incorporado e a pessoa ficava incorporada dentro do xadrez. Não desviravam. As pessoas iam presas assim mesmo. Até hoje, a religião não consegue eleger pessoas provenientes dessa fase de vida. Elas se escondem, não querem aparecer para evitar perseguições. No levantamento, dizem que são espíritas ou católicos. Têm medo de revelar suas convicções religiosas”, apontou Beniste.
RUA DA RELAÇÃO, 40 •SANTO CRISTO
Fachada do antigo prédio do Dops - MARCELO CARNAVAL / AGÊNCIA O GLOBO
No início do século XX, a Polícia Civil do Distrito Federal, inspirada pelo positivismo do filósofo Auguste Comte, queria dar ares científicos às investigações. O método deveria ser levado a cabo mesmo quando o alvo fosse a fé alheia. Por isso, durante muitos anos, as peças apreendidas nos terreiros foram estudadas como exemplos do início do trabalho pericial na Escola de Polícia, criada em 1912. Posteriormente, essas peças foram incorporadas de modo informal ao patrimônio do Museu da Polícia, que abrigava todo tipo de objeto apreendido pelos agentes.
Em 1938, sem uma explicação clara, a Polícia Civil decidiu tombar os objetos. Eles se tornariam o primeiro registro de tombamento do livro do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — agora transformado no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Renato Machado, procurador da República no Rio, que investigou o caso no Ministério Público Federal (MPF) do Rio, contou que, ao examinar os documentos históricos, verificou que as operações policiais foram executadas de modo ilegal na época. “Os objetos foram recolhidos de forma completamente irregular, mesmo à luz da legislação da época. Eles (policiais) simplesmente invadiram os terreiros e apreenderam os objetos sem ter um processo criminal. Muitas dessas pessoas não foram submetidas ao devido processo legal, não foram julgadas por isso. E, para dar uma aparência de legalidade a essa propriedade ilícita, a polícia entrou com um processo de tombamento”, explicou Machado.
Dois anos depois, em 1942, as peças foram reunidas na Seção de Tóxicos, Entorpecentes e Mistificações, nos fundos do terceiro andar do imponente prédio da chefia de Polícia, na Rua da Relação. Dali em diante, os documentos oficiais do estado passaram a se referir ao conjunto de peças como Museu de Magia Negra.
DO "BAIXO ESPIRITISMO"
AO LIBERTE O SAGRADO
Quase 30 anos depois, em 1972, a sede do museu foi transferida para a Rua Frei Caneca, onde funcionou um complexo penitenciário do estado que terminou implodido em 2010. Nesse período, foi montada uma exposição no local e alguns pesquisadores até iniciaram estudos sobre os objetos. A partir das imagens feitas por Luiz Alphonsus, em 1979, ficou conhecida uma estátua de Mefistófeles — que representaria Exu, o orixá mensageiro do povo iorubá.
Ao verificar as imagens de Alphonsus e jornais dos anos 1920, o pesquisador Arthur Valle identificou que essa peça foi apreendida em 11 de junho de 1929. Não há, porém, referência ao nome do dono original. Para Valle, as fotografias da apreensão e da exposição, indicam que os policiais fizeram mudanças no objeto para “aumentar a dramaticidade da imagem” e dar a ele uma impressão sombria. No entanto, em 1989, um incêndio nas instalações do museu na Rua Frei Caneca destruiu parte do acervo. Entre as peças, a estátua de Mefistófeles. No ano seguinte, o museu e a coleção retornaram à sede da Rua da Relação, e as peças que sobreviveram ao fogo ficaram, em parte, expostas até 1999. No entanto, em 2010, o museu foi fechado para reformas e jamais reabriu.
Estátua Mefistófeles - LUIZ ALPHONSUS (1979)
A falta de acesso às peças foi avolumando críticas de religiosos e integrantes do movimento negro em relação à polícia. Segundo o historiador Arthur Valle, há pedidos de restituição das peças desde os anos 1970. A própria Mãe Meninazinha de Oxum disse que já havia feito campanhas pela retirada dos objetos da sede da polícia a partir dessa época. Ela é uma das principais vozes da campanha Liberte o Nosso Sagrado, que também é formada por outras lideranças religiosas, além de políticos e integrantes de movimentos sociais. Para ela, retirar os objetos da antiga sede do Dops é uma missão de vida. “Tem de encontrar um lugar digno para que as pessoas possam visitar e conhecer a história do sagrado”, desabafou.
Essa queixa antiga dos religiosos foi o que originou a pesquisa de Valquíria Velasco. Praticante tanto da umbanda como do candomblé, ela disse que cresceu ouvindo “os mais velhos” contarem as memórias do tempo em que a polícia prendia quem frequentava terreiro. Há três anos, identificou uma reportagem, de 1994, quando o então candidato à Presidência da República pelo PT, Luiz Inácio Lula da Silva, em visita ao terreiro de Mãe Nitinha no Rio, afirmou que, se eleito, iria “libertar as peças do Museu de Magia Negra da Polícia”. “Isso me instigou a pesquisar o que era esse museu”, contou Velasco. Mãe Nitinha de Oxum, porém, não viveu para ver esse momento. Ela morreu em 2008.
Depois que o Museu da Polícia fechou em 2010, as peças então foram guardadas em caixas e apenas uma pequena parte foi exposta na área da reserva técnica por algum tempo. A partir desse período, a Polícia Civil recebeu sucessivas reclamações por manter os objetos como “evidência de crime” e pelas condições como guardava o material. Sobretudo, o acesso das peças aos religiosos se tornou uma contestação frequente.
"TODOS NÓS DA CAMPANHA NOS SENTIMOS COMO FAMILIARES INDO VISITAR SEUS PARENTES PRESOS NA CADEIA"
JORGE SANTANA
Historiador e assessor do deputado estadual Flávio Serafini
Jorge Santana, historiador e assessor do deputado estadual Flávio Serafini (PSOL-RJ), acompanhou todo o processo e relembra de uma inspeção no museu em 2017 que, em suas palavras, “ foi um desconforto muito grande”. Uma das lideranças religiosas pediu que o policial não abrisse as caixas porque os objetos eram sagrados e não deveriam ser tocados por ele. Segundo Santana, o policial respondeu que era “uma palhaçada”. “Todos nós da campanha (Liberte o Sagrado) ficamos muito desconfortáveis, nos sentimos como familiares indo visitar seus parentes presos na cadeia”, desabafou ele.
Além disso, diversas peças corriam o risco de deterioração pelo modo como estavam armazenadas. A maioria possui quase 100 anos e foi feita a partir de materiais orgânicos, mas estava guardada em caixas de papelão em uma sala exposta constantemente ao sol.
Objetos de religiões afro-brasileiras apreendidos no Museu DOPS - LEO MARTINS / AGÊNCIA O GLOBO
A situação foi denunciada por parlamentares do PSOL ao MPF, que abriu uma Ação Civil Pública. O procurador Renato Machado relatou que durante muito tempo foi difícil obter o mínimo de informações da Polícia Civil. Foi apenas com requisições coercitivas que o MPF conseguiu dar andamento ao caso.
“Falavam coisas absurdas nas reuniões. O pessoal das religiões ficava revoltado, criou-se uma polarização no momento inicial de negociação. Isso aumentou a resistência dos dois lados”, relatou Machado. Em uma audiência pública, um policial comparou o pedido de transferência dos objetos do Museu da Polícia para outra instituição com os saques que os nazistas fizeram em museus durante a Segunda Guerra Mundial.
Todos os que acompanharam o desenrolar das negociações contam que a situação mudou com a chegada da delegada Gisele Faro, em abril deste ano. Há 17 anos na corporação, ela carrega na família tanto a história da polícia como as sequelas da escravidão. Sentada em uma cadeira simples em sua sala, ela explicou que desconhecia a apreensão das peças e as batidas em terreiros de umbanda e candomblé. Ao falar de como se sentiu ao descobrir o passado, ela se emocionou.
"DIGO PARA MINHA FILHA QUE, SE NÃO TIVESSE HAVIDO A ALFORRIA, NÓS TAMBÉM TERÍAMOS SIDO ESCRAVOS"
GISELE FARO
Delegada da Polícia Civil
“O que mexeu comigo é que minha mãe é mulata, minha avó e meu avô materno eram negros. Com essa história eu volto no tempo. Converso com minha filha e digo que, se não tivesse havido a alforria, nós também teríamos sido escravos. Teríamos tido nossas coisas apreendidas também. Para mim está sendo importante participar desse contexto. Eu sou uma pessoa de muita fé, acredito que Deus me colocou aqui para fazer a coisa certa, para me colocar no lugar do outro”, contou a delegada, que possui cabelos castanhos encaracolados, lábios grossos, mas pele clara.
Faro disse que, ao ser transferida para dirigir o museu, ficou muito feliz. O pai foi inspetor e a mãe escrevente e ela, ainda muito pequena, frequentava o prédio constantemente na infância. Em suas memórias, é somente o lugar onde visitava os pais, e não o cárcere de presos políticos. Mas ela não nega a história do local e se sensibiliza com o sofrimento dos religiosos de matriz africana.
“Isso vinha de uma época anterior da polícia, de um processo. A responsabilidade que senti que tinha quando vi o acervo era o de conduzir isso até o final da melhor forma possível. Estamos devolvendo objetos que são caros às lideranças religiosas. Isso foi o passado da polícia, somos diferentes hoje em dia. Quando deito a cabeça no travesseiro, sei que estou fazendo a coisa certa”, completou.
CRÉDITOS
REVISTA ÉPOCA
Reportagem: Juliana Dal Piva, Nicollas Witzel, Cíntia Cruz, Barbara Libório • Fotos: Leo Martins, Márcia Foletto, Alexandre Cassiano, Gabriel Monteiro • Interface: Vinicius Machado • Desenvolvimento: Carlos Sá, Gabriel Godoy
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